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Sobre Desejo

Do não-dito da imagem: onde reside o desejo.

  

Da passagem do Homo sapiens sapiens para o “Homo domesticus” que temos nos tornado, é possível destacar esta principal característica que é a constante domesticação, em sua grande maioria de forma predatória, de animas, plantas, sentimentos, pensamentos, ideias, corpos. Esta espécie de controle, inclusive, é institucionalizada e mercantilizada em uma relação de negociação entre Estado e mercado que ganhou mais força a partir da Revolução Industrial e do neoliberalismo econômico e que permeia com efeitos drásticos o planeta Terra. Antropólogos, geólogos, artistas, dentre outros grupos específicos em seus ‘nichos’ de elaboração de teorias e ações, vêm chamando este efeito de Antropoceno (ou Capitaloceno, Plantationceno, dentre outros nomes) –, a fim de demarcar e tentar buscar saídas possíveis frente ao panorama preocupante que se configura a partir dos impactos das mudanças climáticas, pandemias, desigualdades sociais, etc. que nada mais são do que a resposta, ou a ressurgência do planeta Terra (que estes mesmos grupos de pesquisadores e artistas chamam de sistema “Gaia”). É a reação de Gaia à domesticação capitalocêntrica que, por sua vez, é também patriarcal, a este modus operandi domesticador predatório que, ao invés de desenvolver relações simbióticas e cooperativas que abarcam as diferenças e diversidades, promove relações de competição e predação, destruindo ou afetando de forma anti-vida ou anuladora os vários entes dos sistemas nos quais se envolve.

 

Isto acontece, também, em nível de nossos desejos erótico-sexuais, nas micropolíticas do cotidiano de nossos desejos mais íntimos. Neles, as relações de gênero e sexualidade com as quais tomamos contato ao longo de nossos caminhos de vida, se fazem presentes nas formas como manifestamos e vivemos nossa sexualidade. Os corpos das mulheres submetidos aos processos de “domesticação” pelo homem e para o desejo predatório de um ‘masculino’ pautado na ‘agressividade’ ‘violência’ e ‘conquista’ como base de um contato físico erótico –, nada mais são do que reflexos do efeito capitalocêntrico aplicado em nossos corpos em contato erótico. Passa a ser um ‘valor’ o “tornar-se mulher” permeado de regras, aprendizados e moldes de como “domesticar-se” e se submeter à “domesticação” – sobretudo masculinas, inclusive “na cama”.

 

Neste processo de contato com nossos desejos eróticos ao longo da vida, sobretudo a partir da década de 1940, as imagens assumem um lugar importante na medida em que comunicam sobre papéis de gênero, prazer, sexo. As mulheres e também as imagens, passam a ser então, manipuladas e confinadas para o prazer do homem em um contexto patriarcal. Contudo, se o homem domestica as imagens, elas também passam a domesticar o homem, pois elas propõem um modo de existência, um campo de afetos de tipos variados. Eis a “magia das imagens”, seu efeito peculiar de apontar para um modo de existência.

 

As imagens erótico-sexuais do “Homo domesticus” são imagens obcecadas pelo prazer dominado, pela objetificação dos corpos, enfim, pelo prazer da domesticação, sobretudo dos corpos das mulheres. Fica latente a obsessão adoecida pelo “poder” e suas hierarquias, o medo da perda do controle e, portanto, o medo da "ameaça" da diferença.

 

Este trabalho se pretende como um desafio: como viver/fotografar uma “sexualidade bárbara” (quero dizer, anti-domesticação, anti-hierárquica, anti-poder)? Qual é e como expressar na imagem a força erótica ‘Gaia’ que atua em nós? Ou, como esta potência “fala” por meio de nossos corpos durante o sexo? Como seria possível expressar o sentimento do efeito da união erótica-sexual entre forma/matéria (corpos e emoções) em cooperação e não em competição ou, ainda, expressar o conflito da passagem de uma expressão “poderosa” da sexualidade para uma expressão “potente” e vice-versa? Qual seria o antídoto para a subordinação dos nossos desejos eróticos em ação?

Não temos ainda uma resposta para todas estas questões, mas talvez, aprender a perder o controle e se alinhar ao desejo, para compor com ele, possa ser uma tentativa possível. É isto que pretendi fazer de forma fotográfica preliminar neste trabalho. 

 

Neste sentido, este ensaio é uma experiência de transformar em imagens os efeitos íntimos da ‘potência’ dos encontros eróticos em mim, reconhecendo a existência dos efeitos das relações de ‘poder’ que estão permeadas neles.

 

Ao aceitar que nossas práticas e relações “na cama” nos afetam e que são afetadas também por quem somos para além dela, quero enfatizar os reflexos da noção ocidentalizada capitalista e patriarcal de “poder” atuando no campo dos desejos eróticos pessoais, buscando ainda exibir as afetações físicas em mim das maneiras de se relacionar e de interagir eroticamente com pessoas, objetos e seus efeitos.

 

Busquei aceitar as nuances das relações ‘poderosas’ aprendendo a enfatizar, contudo, a energia propiciada pelos encontros potentes como um desejo que “grita” no silêncio das imagens e como um desafio primordial, posto que no final das contas, o controle/domesticação da sexualidade e desejo erótico acaba sempre sendo, no contexto ocidentalizado patriarcal, sobre controlar os corpos das mulheres.

 

A câmera fotográfica tomada como objeto sócio-técnico, a fotoperformance, o uso de cores e movimento e o autorretrato foram os fios condutores conceituais e técnicos entrelaçados na realização deste trabalho, bem como as noções de “potência” e “poder” conforme desenvolvidas pelo filósofo Gilles Deleuze:

“O que é o poder? É o ato, ou a relação que impede alguém de se realizar pela afirmação de sua potência. Dito de outra maneira, é aquilo que afasta alguém do que pode. É despotencializar, é coagir, é desviar a potência de seus caminhos. O poderoso quer dominar, quer se utilizar e se apropriar do outro. Na base desse tipo de relação, há uma espécie de transferência onde um se apropria da capacidade que o outro tem de agir. A questão é que muitas vezes o outro deseja essa transferência, ele quer ser menos responsável e conforta-se com o poder do outro e com sua impotência. Um poder não gera potência naqueles que governa, se gerasse potência, não seria um poder e não se colocaria acima do outro. Todo poder é triste, diz Deleuze, ele administra a tristeza, ele é sempre um obstáculo diante da efetuação das potências. Tudo piora quando percebemos um ciclo vicioso nesse processo, os afetos dão prova de que só quer o poder quem é impotente. Quanto mais fraco nos tornamos, mais desejamos o poder. O desejo de dominar é impotente por si só. Ele investe no poder pois não suporta a potência do outro e não encontra meios de crescer sozinho. O poder é aquilo que cresce por sobre a potência, como o parasita hospedado em um organismo, que ele chama de seu. O poder só se exerce sobre servos, ele nunca se faz sozinho, ele é extremamente dependente daquilo que expropria. A servidão que essa relação promove torna o poder algo muito tentador. É simples, e todos nós conhecemos bem. Cada indivíduo, quando impotente, tenta dominar o outro para tornar-se mais forte que ele. A vontade de dominação do outro é o medo de ser dominado por ele, é a tristeza de não conseguir se compor com o outro, é o ódio da diferença.” (Em:https://razaoinadequada.com/2013/08/18/poder-e-potencia/#:~:text=Um%20poder%20n%C3%A3o%20gera%20pot%C3%AAncia,diante%20da%20efetua%C3%A7%C 3%A3o%20das%20pot%C3%AAncias ).

A live sobre a elaboração deste tranbalho pode ser vista (a partir de 1h32 min.) em:

https://www.youtube.com/watch?v=rw4goZGfjZQ

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